Centro de Estudos e Pesquisa sobre Álcool e outras Drogas

Crack, comunicação e saúde

Debate aborda os rumos das políticas públicas em relação à droga e aponta mídia comercial como disseminadora de estereótipos e visões distorcidas.

Para onde vai a política pública relacionada ao crack no país? Por que se fala em epidemia de crack? Que relação têm os redutos que passaram a ser chamados de cracolândias com a degradação do espaço urbano? Que papel a mídia tem ocupado na construção da opinião pública a respeito do usuário da droga? Essas questões movimentaram os debates da mesa redonda A informação, a comunicação e a agenda da saúde: o caso do crack, realizada em 8 de abril e que marcou a abertura do ano letivo do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).

“Recortes simplistas da questão estão descartados”, resumiu a pesquisadora do Icict Claudia Travassos, que mediou o debate.“Não há um usuário exclusivo de crack”, observou o pesquisador Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro Bastos, do Laboratório de Informações em Saúde (Lis/Icict/Fiocruz), ressaltando que participa de trabalho de campo nas cenas de uso da droga. Para o pesquisador, isolar o crack como alvo principal de combate é um equívoco do ponto de vista de política pública. O uso do crack, segundo ele, inclusive por suas propriedades farmacológicas de estimulante potente e de absorção rápida, está geralmente associado ao de outras substâncias, como álcool, maconha e ansiolíticos.

“O crack só reencena outras situações”, considerou Francisco Inácio. “Na mídia, o tema está ancorado na ideia de loucura e de violência. O usuário é aproximado ao louco. Para além da questão de saúde, a droga é encarada principalmente como um problema de polícia”, disse. “Não se deve cair na lógica ideologizante, moralizante, do usuário como criminoso, doente ou pecador”, ponderou.
A situação atual e os rumos da política em relação ao tema são, para Francisco Inácio, nebulosos. “Há uma inflexão em uma direção que não está clara. Em 30 anos de carreira, observo hoje que os rumos são incertos, o conflito acontece dentro do próprio governo e também na opinião pública”.

 

Caminhos não previstos

Francisco Inácio ressaltou ainda que o uso de drogas era tido como falha moral até o século 19. “Hoje temos uma vertente jurídica e a vertente de saúde”, analisou. Para ele, a proibição não reduz o abuso e traz mais problemas de violência. “Toda regulação de mercado, seja de armas, drogas, seja lá do que for, não abrange a inventividade do ser humano, em relação a caminhos não previstos”, disse, relembrando o caso da Lei Seca, que proibiu o consumo de álcool no Estados Unidos, tendo como consequência a criação de um mercado negro controlado por criminosos.

Para o pesquisador, a abordagem pelo campo da saúde do abuso de drogas deve ser como a de uma doença crônica. “Se todas as outras doenças crônicas fossem tratadas da maneira como o abuso de drogas é abordado, cada aumento de glicemia seria criminalizado e considerado uma recaída. Não se fala em desperdício de bilhões de dólares em tratamento de hipertensos. Hoje, a tendência é culpabilizar até os doentes crônicos”, apontou Francisco. Ele abordou também a dificuldade metodológica de dimensionar a população usuária, uma vez que as mesmas pessoas circulam em diversas cenas, podendo, assim, ser contadas em diferentes lugares. A repressão policial pontual nos locais de uso não seria de grande utilidade. “As cracolândias se redefinem, reconfiguram e fragmentam”, constatou.

Ainda segundo Francisco Inácio, para entender o cenário do crack é preciso observar como se deu historicamente o fenômeno em outros lugares e momentos. Ele citou o exemplo dos Estados Unidos, onde, na década de 1980, o uso da droga estava associado a comunidades negras e hispânicas do interior. Os estudos mostraram que os crack babies (bebês nascidos de mulheres usuárias) poderiam sim apresentar síndrome de abstinência, mas a falta de pré-natal, o abuso de álcool por parte das mães e a desnutrição também tiveram o mesmo nível de impacto sobre a saúde das crianças. “Não dá para desconectar o problema do crack da política de saúde materno-infantil”, concluiu.

Sistemas públicos falhos

Para Marcelo Rasga, pesquisador do Departamento de Ciências da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), todos os sistemas públicos que lidam com o crack estariam falhando: o sistema de ensino, o socioeducativo, o de saúde e o de proteção social. “Considero que o caminho é aprimorar e tornar realmente eficazes esses sistemas”.

O pesquisador, cujo trabalho tem como foco a democracia, a participação social e as condições de vida do segmento infanto-juvenil, observou que o tráfico de drogas exerceu grande influência sobre esse público, desde a década de 1990, em todo o Brasil. “É um mercado que se aproveita do jovem, ora como mercadoria, ora como mão de obra”, considerou Marcelo. ”O crack é mais uma das mercadorias que este mercado ilícito vende, assim como as drogas sintéticas, que são utilizadas pelas classes mais ricas e não geram tanta repercursão negativa”, observou ele, que vê problema nas mediações atuais. “A mídia tem interesses que muitas vezes não se coadunam com os da pesquisa. Não podemos prescindir da comunicação direta e vigorosa com a sociedade”, defendeu.
Sobre a mídia comercial e a cobertura do tema das drogas, o diretor do Icict, Umberto Trigueiros, ressaltou que, mesmo sabendo da correlação desfavorável de forças, os que trabalham pela comunicação independente e desvinculada de interesses econômicos não devem abrir mão de disputar esse espaço. “A mídia também é espaço de conflito”, considerou.

Observador da realidade

Integrante da mídia comercial criticada pelos demais palestrantes, o jornalista da TV Globo Caco Barcellos procurou contar um pouco do que viu durante as coberturas de temas voltados a injustiça social e violência. “Trabalho desde 1975 como repórter. A postura do repórter não produz verdade, nem sequer explica. A postura é de observador da realidade”, analisou. Caco foi contundente em sua crítica à mídia. “A cobertura da violência urbana vai até onde chega a cidadania, até o pé do morro. Vivemos em um país maluco, onde de um lado temos iniciativas maravilhosas, e, de outro, a polícia que mata quem tem um baseado no bolso. Hoje a imprensa apoia a ação de extermínio, ou, pelo menos, temos que declarar nosso fracasso por admitir a existência dessa natureza violenta por parte do Estado”.

Para Caco, a ideia de epidemia também é distorcida. Ele observou que as notícias sobre crack só passaram a tomar conta da mídia, quando começaram a ser atingidas as “pessoas do asfalto”.  A mídia, considerou, parece mais atenta às questões que tocam os mais privilegiados. “Enquanto foi a droga dos mais pobres, o crack estava lá no esquecimento”.

Caco contou que, no trabalho de campo que resultou no livro Abusado (Record), observou a terceira e até a quarta geração de traficantes da facção Comando Vermelho, e conviveu com cerca de 200 jovens envolvidos com o crime. Em comum, ressaltou, todos tinham nas suas histórias de vida a ausência da figura do pai e muitos também da mãe, temporariamente ou durante a semana. Para ele, a ausência da figura do pai em comunidades e entre traficantes é recorrente e traria uma pista para se compreender o problema da criminalidade. “Trago propositalmente duas frases de efeito para a discussão. Uma é que o problema do crack é a cachaça. A outra é que o problema do crack é a falta de pai. O pai na maioria dos casos morreu ou abandonou a família por causa da cachaça, ou foi assassinado pelo próprio Estado”, observou. “Acredito que esses jovens sem pai ficam vulneráveis ao uso de drogas”, considerou ele, apontando uma “neurose coletiva nacional” quanto às drogas ilegais. “Eu defenderia o combate às bebidas com alto teor de álcool, como a cachaça”.

O papel da mídia comercial como disseminadora de estereótipos e visões distorcidas dos usuários de crack foi consenso entre os palestrantes. O pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz), Paulo Amarante, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, defendeu que a mídia produz conteúdos que podem interferir na capacidade de julgamento dos indivíduos; tanto a defesa da internação compulsória de usuários como a denominação de epidemia para o cenário do uso da droga, disse ele, são visões errôneas reiteradas e difundidas pela mídia. O uso da palavra epidemia tem “conotação de contágio, de contaminação virótica”, e cunho pejorativo, considerou. Para Paulo, a mídia reduziu a questão do crack a caso de polícia e fortaleceu a noção de cracolândia — “exibida como se fosse um reality show” —, a serviço de processos de reurbanização, especulação imobiliária e limpeza étnica. “Passa pela reestruturação urbana e do capital, pela questão das empreiteiras e pela corrupção”, observou.

Paulo alertou, ainda, para a existência de um “mercado do crack”, fomentado pela necessidade de o Ministério da Saúde dar respostas à pressão social e liberar para os municípios recursos destinados ao combate à droga. Isso, segundo Paulo, acaba por incentivar, sobretudo municípios do interior, a superestimar o problema para receber esses recursos.

Esse mercado contemplaria ainda, uma “tentativa não só de ampliação de leitos, mas de criação de instituições de saúde, que nem tão rigorosamente são comunidades terapêuticas, o que por si já é uma fraude”, considerou Paulo, alertando para o uso inadequado de um conceito caro  Reforma Sanitária.

Redução de danos

Um caminho possível para o controle do abuso de drogas, apontou Paulo, é a redução de danos. “Quando o usuário busca redução de danos, essa é a primeira demonstração de que ele quer cuidar de si. É preciso estabelecer relações de parceria, de cuidado e de autocuidado com o usuário”.

Paulo reforçou ainda que a guerra às drogas aumenta a violência social. “Temos que discutir a legalização e criar espaços de uso seguro”. Para ele, é importante que entrem na discussão drogas lícitas e substâncias psicoativas em uso regular na medicina, “adotadas de maneira submissa e servil”, com base em pesquisas centradas no interesse de mercado. “Não se vê a campanha Prozac: é possível vencer!”, exemplificou.

 

Fonte: Revista Radis

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